Era tarde de sábado e a família estava em um dos tradicionais churrascos na laje da casa. Lucas, de 9 anos, veio correndo da rua, passou pela família e se trancou no quarto. O pai chamou, a mãe insistiu, o irmão mais velho ameaçou derrubar a porta. Mas tudo o que ouviram foi o choro do menino. De tanto a mãe implorar ele abriu a porta, de cabeça baixa, envergonhado. E contou: tinha sido “agarrado” pelo vizinho, de 16 anos. A família correu para a delegacia fazer a denúncia, Lucas passou por exame e entrou para uma estatística que só cresce em Campinas: a da violência sexual contra crianças. Os ataques sexuais contra meninos cresceram 41,1% no ano passado, na comparação com 2014. A violência contra as meninas cresceu 13,4% no período.
A violência sexual vitimou 242 crianças e adolescentes em Campinas no ano passado. Foram 48 meninos em 2015 e 34 em 2014 e 194 meninas no ano passado e 171 em 2014, segundo o Sistema de Notificação de Violência em Campinas (Sisnov). O vizinho adolescente sumiu depois do estupro e sua família, tem cinco meses, se mudou do Campo Grande, uma das regiões de maior vulnerabilidade social da cidade.
“A sensação de impunidade é o que mais me atormenta. Meu filho foi abusado, a família toda continua traumatizada, Lucas se tornou um menino quieto, triste, com medo de sair na rua. A polícia se empenhou em encontrar o rapaz, mas ele está vivendo tranquilo por aí”, disse Lenira, a mãe de Lucas. Os nomes são fictícios.
O número de abuso sexual de meninos (e meninas também) pode ser muito maior que o registrado pelo Sisnov, que recebe as notificações das instituições integrantes das redes de assistência, como hospitais, centros de saúde, Vara da Infância, universidades, Instituto de Medicina Legal (IML) e conselhos tutelares. O medo, a vergonha e dúvidas quanto a sua sexualidade ainda são as principais dificuldades dos meninos em relatar os abusos, segundo a psicóloga Neide de Oliveira. Para ela, há uma tendência em subestimar a violência sexual contra meninos porque o tema ainda é visto como um grande tabu na sociedade.
Segundo ela, meninos e meninas têm dificuldades em falar que foram vítimas dessa violência, mas para os meninos a dificuldade é maior, porque vivem em uma sociedade em que “homem não chora” e que “sabe se defender sozinho”. “A criança cresce com essa cultura machista e contar que foi violentado é como admitir que foi fraco. Isso o envergonha muito e é por situações assim que há grande subnotificação dos casos”, afirmou.
O especialista em sexualidade Jorge Couto disse que, além do tabu imposto por uma cultura machista, a denúncia dos casos de abuso contra meninos e adolescentes enfrenta também uma questão estrutural mais delicada.
“Quando uma menina é abusada e denuncia essa violência, ela tem uma delegacia da mulher para ser atendida, com um ambiente mais acolhedor, ao contrário dos meninos, que denunciará o crime em um distrito policial onde o delegado está lidando com roubos, assassinatos. Não que a autoridade atenderá a criança de forma diferente daquela que a delegada da mulher atende a menina. Mas o ambiente de uma delegacia geral é mais intimidador”, afirmou.
Dentro de casa, meninas são as vítimas mais comuns
Quando se trata de violência doméstica, o abuso sexual é mais recorrente em meninas do que em meninos porque o abusador ou é o pai, o padrasto, o tio. Além disso, o fato de as notificações desse tipo de crime ocorrerem mais com mulheres também pode ser explicado pela prevalência de heterossexuais na população em geral, explica a psicóloga forense Maria de Fátima Franco dos Santos. Já com os meninos, a situação é um pouco diferente. Se eles são pequenos, os abusos são notificados, mas se ele tem 12, 13 anos, na maioria das vezes ele não conta o que ocorreu porque tem medo de enfrentar o preconceito, de ver sua sexualidade questionada.
“Os meninos são grandes vítimas da cultura machista, que diz que homens são fortes, que homens não choram, que homens se defendem”, afirmou.
Difícil estabelecer a quantidade de casos de abuso de meninos e meninas que não chegam ao conhecimento de autoridades e mesmo da rede de assistência existente na cidade porque faltam estudos no Brasil.
Segundo Maria de Fátima, quando o agressor é um desconhecido a denúncia ocorre mais do que quando é feita dentro de casa. A literatura estrangeira, segundo a psicóloga, aponta que apenas entre 10% a 30% dos casos de violência sexual em mulheres são notificados. Com meninos, é bem menos ainda. O abusador, diferente do pedófilo, é um psicopata. Ele não é doente, mas tem um distúrbio com característica de personalidade de pessoa fria, que não respeita nada, que não se importa com a lei, que ameaça e por isso comete crime, explica a psicóloga.
Já o pedófilo tem consciência e consegue se controlar e essa é uma característica que torna difícil o flagrante, porque ele não se arrisca a ser visto abusando de uma criança.
http://correio.rac.com.br/mobile/2016/11/campinas_e_rmc/458985-abuso-contra-criancas-preocupa-campinas.html