Por Marcelo Cypriano
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“O Egito é uma dádiva do Nilo”, disse o célebre historiador Heródoto. E com razão: a civilização daquele país africano, de clima desértico, só foi possível por causa do mundialmente famoso rio. Suas cheias anuais cobrem boa parte da terra de ambos os lados, fertilizando-a e tornando-a própria à agricultura. Quando as águas voltam ao leito normal, deixam muita matéria orgânica, que aduba naturalmente o solo egípcio. Natural que a população se instalasse nessa área.
PlanejamentoA história do profeta Moisés tem tudo a ver com o Nilo. Foi em suas águas que sua mãe biológica depositou o cesto calafetado, como um barquinho, e o bebê desceu dentro dele pela corrente até o lugar em que a filha do faraó da época banhava-se com suas aias (ilustração cima). A princesa resgatou o pequeno e criou-o como seu filho, educando-o como nobre, até ele seguir o caminho que Deus reservara: liderar seu povo de origem, os hebreus – então escravizados –, pelo deserto rumo à Terra Prometida. Também foi o mesmo rio que uma das pragas lançadas contra o Egito tornou vermelho, assustando os egípcios e forçando-os a libertar os descendentes de Abraão.
Os antigos egípcios, muito antes da época de Cristo, tornaram-se historicamente famosos pela ciência e pelas artes. A tecnologia era avançada para a época no tocante à arquitetura, escrita, medicina e agronomia, essa última, determinante para um povo que vivia em um reino desértico. Por isso mesmo, a ocupação às margens do rio que garantia sua subsistência foi feita com sabedoria, ao contrário do que muitos povos fazem hoje.
Como as cheias do rio obedecem fielmente a um calendário de cheias, os egípcios usaram-no a favor deles. Mediam a área máxima coberta pelas enchentes, e só construíam suas casas, palácios e outras edificações na parte que estava sempre seca. Assim, evitavam as perdas. Não é como fazem hoje em várias cidades, inclusive do Brasil: constrói-se bem na margem de um rio (muitas vezes até avançando no curso d’água) e, quando ele recebe mais água por conta de chuvas, lá se vai o patrimônio de uma vida inteira, além de outros prejuízos à saúde e até psicológicos. Bem antes de Cristo, ainda nos tempos bíblicos, o planejamento habitacional parecia mais racional que em muitas cidades atuais. Sem falar no respeito pelo rio que garantia a vida (alguns dos nossos não passam, hoje, de colossais canais de esgoto).

Hoje, algumas cidades egípcias ribeirinhas (como a própria capital, Cairo, na foto acima) até possuem grandes edificações bem na margem do rio. Mas um planejamento muito bem engendrado permitiu isso, com as devidas proteções. Represamentos de segurança e barreiras, além do aumento da profundidade em certos pontos, tornam o Nilo de hoje mais seguro para quem mora bem perto dele.
Ocupação atual

A fertilização do solo pelas cheias do Nilo fez com que o Egito fosse chamado na Antiguidade de “Celeiro do Oriente”. Isso começou cerca de 5 mil anos antes de Cristo (a.C.), quando povos nômades e seminômades das regiões das atuais Líbia, Etiópia e Palestina dirigiram-se para lá, pois ocorria com mais intensidade o processo de desertificação do norte africano (incluindo o vasto Saara). Esses povos formaram aldeias agrícolas, que aos poucos evoluíram para cidades-estado chamadas nomo, administradas pelos nomarcas, que vieram a ser a primeira classe nobre egípcia.
As dificuldades naturais locais fizeram com que os nomos se unissem para garantir sua sobrevivência, no que resultaram dois grandes reinos, o do norte e o do sul, respectivamente o Baixo e o Alto Egito. Por volta de 3000 a.C., os reinos foram unidos pelo então rei Nemés, o primeiro faraó (“senhor da casa alta”, em alusão ao palácio real, na língua local). Começou com ele a primeira dinastia egípcia. Um rei do Egito primitivo também era conhecido como “senhor das duas terras”, em referência à unificação dos reinos antigos.

A pesca também era abundante, embora em alguns pontos o rio seja muito perigoso até hoje por causa dos enormes crocodilos e hipopótamos que o habitam. É um dado curioso, mas esses últimos são, no continente africano, uma das espécies que mais matam pessoas que invadem seu espaço.
Diques e reservatórios foram construídos com o tempo, tanto para controlar um pouco as grandes cheias quanto para garantir a água necessária a humanos, animais e plantas nos tempos de chuva escassa.
Menos escravos do que se imagina
Ainda no Egito Antigo, a mão de obra também era administrada de acordo com o Nilo. Um aparte: é comum pensarmos nas pirâmides e outras construções feitas por escravos (hebreus e outros), mas, ao longo dos anos, arqueólogos e historiadores comprovaram que os que construíam e mantinham o reino não eram somente os cativos. Existia a escravidão, tal como vemos no livro do Êxodo, mas grande parte dos trabalhadores era livre. Acontece que, ao invés de somente os tributos serem pagos em dinheiro, parte do trabalho dos cidadãos livres deveria ser feita para o reino, em prol de todos. Voltando ao calendário: na época em que o rio estava normal, quase todo mundo ia trabalhar nas lavouras. Quando as águas subiam, os alimentos já haviam sido colhidos e estavam devidamente estocados (em colossais silos), e a mão de obra era voltada para os trabalhos mais urbanos: construções e manutenção.

Hoje
Nos dias atuais, o Egito continua a depender muito do Nilo. Ainda assim, o “progresso” não obedeceu aos padrões da época do início de sua civilização. A ocupação desordenada em algumas de suas nascentes originou a poluição das águas, que joga, indiscriminadamente, naquele que é o responsável por sua sobrevivência, os mais variados tipos de dejetos. Nada diferente do que fazemos no Brasil, como podem nos provar rios importantíssimos como o Tietê e o Pinheiros, em São Paulo, e a avassaladora maioria dos de outras cidades pelo País. Em quase todos eles, suas margens foram os berços dos municípios que hoje os poluem e matam. Uma retribuição bem longe da ideal aos recursos naturais dados por Deus, que tornaram a vida possível.