Por Marcelo Cypriano
Os embates dos tempos bíblicos geraram costumes ainda presentes à vida militar e civil de hoje, e eram bastante ligados à devoção a Deus
marcelo.cypriano@arcauniversal.com

“E aconteceu que, tendo decorrido um ano, no tempo em que os reis saem à guerra, enviou Davi a Joabe, e com ele os seus servos, e a todo o Israel; e eles destruíram os filhos de Amom, e cercaram a Rabá; porém Davi ficou em Jerusalém.”
2 Samuel 11:1
O “no tempo em que os reis saem à guerra” do trecho acima mostra um dos costumes relativos aos enfrentamentos bélicos na época do Antigo Testamento. Alguns combates aconteciam em uma época do ano em que os celeiros estavam cheios, e os homens deixavam as ferramentas para pegar em armas, além de as condições atmosféricas serem favoráveis às campanhas. Todo homem em condições de lutar era convocado.
Não era comum que houvesse uma “declaração de guerra”. Ela começava assim que um exército invadia o território de outro. As forças do lugar invadido se dirigiam ao campo e havia uma conferência entre as duas partes – obviamente, cada uma tentando mostrar maior poderio de armas e homens que a outra, pois toda guerra começa psicologicamente, uma lição infelizmente aprendida e aplicada mais tarde pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial.

Na conferência, inicialmente as armas davam lugar a uma negociação. Em troca de algo (bens ou outra reivindicação), os invasores prometiam a retirada ou mesmo não atentar contra a vida do exército adversário e seu povo. Se não houvesse um acordo, ou as forças defensoras se negassem à rendição, sua cidade era invadida. Os reis, muitas vezes, iam para a frente de batalha com seus homens. Na foto acima, o monarca Assuero em uma de suas muitas batalhas, como mostrado na minissérie "A História de Ester", da Rede Record.
Costumava-se, no começo, cortar o suprimento de água e alimentos, para ver até onde o povo da localidade aguentava até se render. Geralmente, era feito um cerco completo à cidade, isolando-a (como na batalha de Jericó). Se os invasores tivessem êxito, apoderavam-se de todos os bens, era comum que matassem todos os homens e escravizassem as mulheres e crianças (ou tornassem todos, sem distinção de sexo, escravos, dependendo da necessidade de mão de obra). O saque era usado para pagar os guerreiros vencedores. Daí uma curiosidade: a palavra "soldado" significa, em sua origem, alguém a quem se contratou sob o pagamento do "soldo", termo que deriva do latim solidum nummum, uma moeda da Roma imperial. “Militar”, por sua vez, significa “andar em mil”, derivado do costume de as forças armadas serem quase sempre formadas por muitos homens, procurando vantagem pelo menos numérica.

Nos embates coletivos (como na cena de "Rei Davi" acima), usavam-se inicialmente armas de ataque à distância (catapultas, lanças, fundas e arco e flecha, cada um com seus especialistas agrupados em fileiras uns após outros) e de combate corpo a corpo (espadas, machados e punhais). Soldados lutavam sobre cavalos, carros puxados pelos mesmos animais ou em terra.

Eram comuns (não que tenham deixado de ser) os atos cruéis para aterrorizar e humilhar os oponentes vencidos. Os assírios, por exemplo, capturavam os homens mais importantes da sociedade dominada, torturavam-nos e executavam-nos em praça pública, ou na principal entrada da cidade, deixando os corpos à vista de todos, apodrecendo. Alguns povos cortavam as cabeças dos oponentes e as mandavam aos escribas, para que fizessem a contagem.
Duelos de campeões
A passagem que se refere à batalha em que Davi enfrentou Golias (conforme a foto abaixo, da minissérie "Rei Davi") mostra outro costume da época. Escolhiam-se os “campeões” de cada facção envolvida, geralmente os combatentes mais poderosos e hábeis, muitas vezes famosos além dos limites de seus reinos, e os dois se enfrentavam diante de seus exércitos, como representantes oficiais deles. Antes da luta, era negociado o que o lado derrotado pagaria: se em riquezas ou com a morte, ou mesmo com o próprio reino – algumas vezes, a simples retirada, eventualmente com a promessa de nunca mais tentarem invasões contra aquele povo.

Como eles representavam seus povos, a derrota de um significava a derrota de todo o seu exército, e a rendição geral era oficial. Se o campeão do povo invadido ganhasse, os invasores se retiravam, ou cumpriam outra coisa que tivessem prometido. Davi matou Golias, e os filisteus, representados pelo gigante, foram obrigados a admitir a derrota.
Guerra e religião
A prática militar era completamente ligada à crença dos judeus antigos. Para eles, Deus era o Senhor dos Exércitos, o General-mor, acima até mesmo do rei e dos generais humanos.
“O SENHOR é homem de guerra; o SENHOR é o seu nome.
Lançou no mar os carros de Faraó e o seu exército; e os seus escolhidos príncipes afogaram-se no Mar Vermelho.
Os abismos os cobriram; desceram às profundezas como pedra.”
Lançou no mar os carros de Faraó e o seu exército; e os seus escolhidos príncipes afogaram-se no Mar Vermelho.
Os abismos os cobriram; desceram às profundezas como pedra.”
Êxodo 15:3-5
Era exigido que os guerreiros se mantivessem puros, segundo sua crença, para que lutassem. E essa pureza incluía a abstinência de sexo (dentre outras coisas, para preservar as forças do homem, como hoje é comum treinadores pedirem aos atletas em alguns esportes). Por isso, Urias negou-se a seguir o que Davi lhe ordenara, com más intenções, já que dormia com Bate-Seba, esposa do militar ( 2 Samuel 11:11).
Profetas frequentemente diziam aos reis e generais como deviam proceder, segundo ordens de Deus (1 Reis 20:13-30, 2 Reis 6:8-10 e Juízes 4), com a vitória assegurada caso obedecessem.
Hoje vemos em livros, filmes e quadrinhos com histórias bélicas ou de super-heróis os “gritos de guerra”. Eles também tiveram origem em tempos bíblicos, como encorajamento, e eram totalmente de cunho espiritual:
“Tocando eu a buzina, eu e todos os que comigo estiverem, então também vós tocareis a buzina ao redor de todo o arraial, e direis: Espada do SENHOR, e de Gideão.”
Juízes 7:18
Todos deviam entender que a vitória não era deles, mas de Deus, para a glória dEle. E a Ele pertenciam os despojos (bens e armas dos inimigos). Muitas vezes, os bens, se fossem inanimados, eram queimados em sacrifício ao Senhor – principalmente quando o inimigo vencido era considerado amaldiçoado, e ninguém deveria pegar sequer uma simples moeda (Josué 7). Os animais também podiam ser mortos e queimados, da mesma forma. Algumas vezes, Deus permitia que os despojos fossem distribuídos entre os soldados vitoriosos (Josué 8:27).

Dessa correlação entre o combate e a crença surgiu a figura do capelão, um misto de sacerdote e soldado. Os combatentes precisavam de apoio espiritual durante as campanhas. Os sacerdotes e profetas estavam presentes a todos os aspectos da vida de seu povo, e isso incluía a guerra. Com o tempo, eles ganharam patentes, compondo suas forças armadas. A Constituição Federal brasileira determina a presença dos capelães nas forças armadas, além das polícias e corpos de bombeiros militares. Eles devem prestar concursos públicos e recebem patentes, devendo passar pelo devido treinamento. No quartel ou na frente de batalha dão a devida assistência aos irmãos de armas. Com o tempo, “capelania” também passou a determinar o trabalho civil de apoio espiritual em lugares como hospitais, presídios ou escolas.

Já no Novo Testamento, Roma exercia poderio sobre os judeus. A figura do soldado romano (ao lado) era bastante comum no cotidiano dos hebreus, espalhados pelos domínios de César. Costumes e termos militares romanos eram bastante usados no dia a dia. Em Efésios 6:13-17, Paulo de Tarso usa a vestimenta e os equipamentos dos guerreiros de Roma como metáforaspara a famosa “armadura de Deus” que os cristãos deveriam usar.
Em Colossenses 2:15, Paulo, ele mesmo antes obediente a Roma, usou costumes militares romanos para exemplificar sobre Cristo vencendo os inimigos (potestades e principados) do “exército do mal” e exibindo os despojos, marchando em triunfo – verdadeiros desfiles eram realizados para celebrar a vitória, de onde se derivaram algumas paradas atuais, de cunho cívico ou militar.
O mesmo Paulo descreve os “soldados de Cristo”, pedindo disciplina e compromisso dos seguidores:
"Sofre, pois, comigo, as aflições, como bom soldado de Jesus Cristo.
Ninguém que milita se embaraça com negócios desta vida, a fim de agradar àquele que o alistou para a guerra.
E, se alguém também milita, não é coroado se não militar legitimamente.”
Ninguém que milita se embaraça com negócios desta vida, a fim de agradar àquele que o alistou para a guerra.
E, se alguém também milita, não é coroado se não militar legitimamente.”
2 Timóteo 2:3-5